domingo, 22 de dezembro de 2024

 

Além da Taprobana

24 de dezembro de 2024


Querido diário,


o stor de português deu-nos uma tarefa para estas férias de Natal. Até que estou bastante empolgada para fazer este trabalho! Ele quer que imaginemos o que diria o grande poeta Camões se viesse passar o Natal de 2024 na sua muy amada cidade de Lisboa. Espera que dissertemos sobre quais seriam as suas impressões ao regressar à pátria, 500 anos após o seu nascimento. Cá por mim vou convidá-lo para a ceia de Natal e contar-lhe como é lá na escola ter de estudar a sua obra. Ele vai perceber que a malta nova não está muito pelos ajustes ao debruçar-se sobre os Lusíadas. Certamente compreenderá que quase 5 séculos depois do seu canto épico, há demasiado intervalo entre nós e que a sua tão amada língua portuguesa está bué de diferente, embora continue muy formosa. Certamente se arrepiará ao saber que dividimos as suas estrofes em fatias, as dissecamos para melhor as compreendermos. Ao que isto muito o incomodará e me dirá que a poesia é água fresca para beber e não para despedaçar. E se eu lhe contar que durante as aulas é o cabo das tormentas, há bocejos e olhares discretos ao telemóvel, dirá que somos demasiado jovens para compreender o amor vivido e que para entender verdadeiramente a sua obra teríamos que sair da ocidental praia Lusitana e passar além da Taprobana! Mas claro que Camões não sabe como são as nossas escolas e que nunca seria possível empreendermos tal viagem! Ummm... pensando bem, querido diário, talvez é melhor enveredar por outro caminho neste meu trabalho, senão o stor ainda me dá nota zero!

A primeira coisa a fazer é convidar o poeta para a ceia de Natal em minha casa. Depois, conto-lhe como a sua obra, Os Lusíadas, é conhecida nos quatro cantos do mundo e que entre nós é considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. A ele, Luís Vaz de Camões se atribui o título de pai da língua portuguesa e é por isso que no dia 10 de junho, data da sua morte, é feriado nacional e se comemora o dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas. Camões fica comovido perante tão importante reconhecimento do seu trabalho. Proponho-lhe então um passeio pelas ruas de Lisboa, para que veja como estão amplas as avenidas reedificadas após o terramoto de 1755. Camões fica impressionado ao perceber que não há só tempestades no mar e que mesmo em terra o mar mostra a sua força avassaladora. Começamos a nossa visita em Belém, junto à torre que já existia no seu tempo e de onde partiu a armada de Vasco da Gama, imortalizada nos seus poemas. Daí seguimos para o padrão dos descobrimentos, onde o poeta figura na caravela de pedra segurando um exemplar dos Lusíadas, ao lado de outras estátuas de notáveis portugueses. Como não podia deixar de ser, vamos também ao Mosteiro dos Jerónimos onde lhe foi dada a honra de repousar ao lado de reis. Luís Vaz de Camões fica abalado perante tão grande reconhecimento do povo português! Ele que morreu na miséria emociona-se ao ver a sua última morada entre os maiores da sua tão amada pátria! Num terno abraço sussurro-lhe as palavras de um outro grande poeta português, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Este grande poeta escreveu ainda, “minha pátria é a língua portuguesa” e o seu nome é Fernando Pessoa e tem também lugar a ser homenageado neste mosteiro. Camões fica impressionado pela beleza destas palavras e percebe que Portugal continua a ser um país de grandes poetas.

Depois, seguimos para a baixa Lisboeta e perto do Chiado paramos a admirar o monumento a Camões, situado na Praça Luís de Camões. Aí diversas pessoas se aproximam e pedem para tirar fotos com o poeta, pensando tratar-se de uma animação de rua. Nem fazem ideia que estão a registar nos seus telemóveis, o autêntico, o verdadeiro poeta da Humanidade! Camões parece ficar um pouco desconfortável com tão grande ajuntamento e também porque nem sequer sabe o que são fotos e telemóveis. Pego-lhe pela mão para o tirar dali, enquanto lhe explico o que são estas pequenas maravilhas da tecnologia. Aproveito para o levar a um pronto a vestir, é que com estas roupas do séc. XVI dá demasiado nas vistas! Camões nem quer acreditar no que vê, roupa já confecionada, pronta a usar! Nas etiquetas repara em nomes de outras pátrias bem distantes e eu explico-lhe que é o resultado do mundo global em que vivemos e que este processo de globalização terá começado na sua época com a epopeia das viagens dos portugueses e de outros povos. Nesta altura, já cansados, irei convidá-lo para irmos para casa, onde os meus pais nos aguardam para uma ceia típica de Natal: o bacalhau à mesa na consoada. Camões perceberá que o mar continua parte da vida dos portugueses.

Já no metro ouvimos uma criança a comentar com a mãe, “aquele senhor tem um olho à Camões”. Rimo-nos, enquanto eu lhe explico que é mais um fenómeno da sua popularidade e fico a ouvi-lo relatar como perdeu o olho direito durante uma batalha em Ceuta. Chegados a casa, e depois das devidas apresentações, (a minha mãe emocionou-se muitíssimo!), Camões detém-se perante a televisão que, infelizmente, estava ligada e apercebe-se que a sua tão amada Jerusalém está envolvida numa guerra sem fim à vista. Emociona-se mais uma vez e fica profundamente pensativo como que sem perceber a devida dimensão desta notícia. Imediatamente desligo a televisão e para o tentar animar e dissipar um pouco a atmosfera dramática ligo o computador e mostro-lhe como, com a ajuda da internet, tudo se faz perto à distância de um clique (só não sei como lhe explicar o que é a internet, só sei que já não posso viver sem ela!). Vemos imagens de uma estátua sua em bronze na ilha de Moçambique, Camões olhando o Índico! Depois viajamos para Macau e vemos imagens do Jardim Luís de Camões, da gruta onde terá vivido e de mais uma homenagem à sua pessoa na forma de um busto e do canto I dos Lusíadas gravado na pedra. Comento que, nunca como nos dias de hoje, as distâncias se tornaram tão curtas. O que na sua época poderia durar meses em perigosas viagens por mar, pode ser feito agora em poucas horas. As naus deram lugar a aviões, “barcos que voam” e os automóveis, que são como cavalos de ferro, encurtam as distâncias. Mas Camões continua pensativo e quando finalmente se decide a falar diz que nunca duvidou que as gentes fossem capazes de tão grandiosos feitos, impensáveis no seu tempo, mas que há coisas que permanecem. E continua dizendo que ainda não fomos capazes de transcender as desavenças com os nossos semelhantes, as doenças e a morte. E que estes é que são os grandes desafios da Humanidade. E foram estas sábias palavras que ouvi daquele grande homem que tanto enalteceu o povo português.

Nisto, somos interrompidos pela voz da minha mãe a chamar para a mesa. Este Natal está a ser incrível, que privilégio ter connosco um tão ilustre convidado! Como eu já previa, durante o jantar, os meus pais quiseram contar-lhe a “sua história”, que eu já ouvi uma centena de vezes. Então, contaram que no seu tempo estudava-se os Lusíadas no nono ano e que nessa altura também ainda não havia telemóveis e era costume passarem-se papelinhos com mensagens nas aulas. Temos que imaginar uma aula de português, com jovens de 14 ou 15 anos e o stor a ler os poemas do canto III, da história de D. Pedro e D. Inês. O meu pai, que já nessa altura estava loucamente apaixonado pela minha mãe, inspirado por aquele momento poético, escreve num papel:


Amores trágicos não são para mim

Gosto de te olhar na aula de português

Com o stor a ler poemas sem fim

Estou apaixonado, será que não vês?

Sei que para ti sou só um amigo

Queria saber se queres namorar comigo.


O papelinho segue de mão em mão, bem dobrado em quatro, como para escrutínio e quando está a chegar ao destino, é intercetado pelo stor de português que o lê em voz alta perante toda a turma. A minha mãe, na altura uma jovem muito envergonhada, toda corada, responde um bem alto “sim” ao que toda a gente aplaude, incluindo o stor!

Camões que ouvia esta história com muita atenção, acrescenta, “amor é fogo que arde sem se ver”, já dizia o poeta! Ao que todos rimos à gargalhada!

E esta noite de Natal tão especial continuou com o nosso amigo Camões (sim, porque agora já somos amigos!) a dar-nos a honra de nos ler os seus Lusíadas, como fazia para o rei D. Sebastião! E chegada a hora de descansar, depois de tantas emoções deste dia, agradeço ao grande poeta pelo brilho tão especial que deu a este Natal de 2024 e agradeço ainda ao stor de português por este desafio e espero que me dê boa nota! Ah! E já me esquecia: Feliz Natal querido diário!


Amélia Silva