Este foi o conto de Natal com que venci o concurso de contos de Natal da BLCS 2022
Conto de Natal nas entrelinhas
A minha avó só gostava de finais felizes. Foi assim até ao momento da sua morte. Não sei como conseguiu, mas morreu exatamente no dia 24 de dezembro, véspera de Natal. Era o seu dia preferido, como se passasse todo o ano à espera desse momento. Nessa altura pegava na minha mão e levava-me até ao cimo do outeiro, debaixo da grande carvalha e contava-me quando viu pela primeira vez o meu avô, ali sentado naquela pedra a ler. A vida da minha avó mudou a partir desse momento. Uma vida dedicada à escrita e sempre em busca de finais felizes. A minha avó foi uma grande escritora, uma das maiores do seu tempo e em muito o deveu ao meu avô.
A minha avó vinha de uma família muito pobre, das mais pobres do vilarejo. Tinha sido criada pela sua avó. A sua mãe morrera quando era ainda muito pequena e o seu pai fora para fora para o estrangeiro em busca de trabalho e nunca mais se soube dele. Não cheguei a conhecer a minha bisavó, mas pelo que ouvi dizer, era uma mulher enérgica e sempre bem-disposta. A minha avó tinha-lhe herdado o feitio. À noite, e as noites eram escuras e longas nessa altura, a minha bisavó contava histórias à sua neta ao calor da lareira, até ela adormecer. Eram histórias de uma ambiência fantástica. De bruxas a dançar à meia-noite em clareiras da floresta, de meninas encantadas que saiam para correr o fado transformadas em animais e histórias dramáticas, como as três laranjinhas de oiro, que chegaram até mim e que ainda hoje fazem parte do imaginário coletivo da nossa família. Graças aos esforços da minha bisavó, a minha avó pode estudar até à quarta-classe. A minha avó sempre me contava que a sua professora tinha insistido para que prosseguisse estudos, que era uma menina cheia de talentos, mas ela não podia, a minha bisavó estava a ficar demasiado velha e cansada para andar com o rebanho no monte e precisava dela para assegurar o seu sustento. Essa professora, sem o saber, tinha-lhe mudado a vida. Como prenda de despedida tinha-lhe oferecido um livro. Tratava-se de A Rosa do Adro, um dos romances mais vendidos na época e que era agora o seu primeiro e único livro.
Com as ovelhas no monte a pastar tinha todo o tempo do mundo para ler. Leu esse romance vezes sem conta e invariavelmente chorava no final, pois achava muito triste toda a trama. Foi desde essa altura que a minha avó decidiu que só gostava de finais felizes. Para dura já bastava a vida e ela jurou logo ali que iria ser sempre uma pessoa alegre e bem-disposta fosse o que fosse que a vida lhe trouxesse. Refugiou-se na escrita e criou o seu próprio mundo. Na altura em que sentiu essa vontade incontrolável de criar através da escrita deparou-se com o problema de não ter onde escrever. Desejou do fundo do coração ter um caderno como prenda de Natal. Mas, o seu anseio de escrever era tanto, que olhando para o seu único livro que sempre a acompanhava, pensou que se lá dentro cabia uma história, bem podiam caber duas e foi assim que entre linhas começou a criar o seu primeiro romance. Por altura em que escrevo estas palavras, acaricio o livro já bem amarelecido onde ainda se pode ver a caligrafia da minha avó e quando passo os dedos pelo seu manuscrito entre linhas sinto-a mais perto de mim.
Um dia, como tantos outros em que a minha avó subia a ladeira com o rebanho, viu, sentado no penedo ao lado do grande carvalho, um rapaz que aparentava ser mais velho do que ela. O rapaz estava concentrado a ler. Tímida, mas cheia de curiosidade, aproximou-se. Nunca tinha visto aquele rapaz na aldeia.
Começaram a falar e ela soube que ele estava de visita à sua tia para passar as férias de Natal. Pertencia às do Eido, uma família abastada que vivia numa casa senhorial. Era um rapaz da cidade e estava a ler um livro bastante volumoso. O rapaz falou-lhe do livro que estava a ler. Tratava-se de Os Maias, de Eça de Queirós e estava quase a terminá-lo. A minha avó mostrou-lhe o seu único livro, agora com outra história que tinha crescido dentro.
O rapaz deve ter ficado tão fascinado com a menina pastora que voltou no dia seguinte ao mesmo lugar e no outro dia e sempre todos os dias até ao fim das férias de Natal. No dia da véspera de Natal, e parece que ainda oiço a voz da minha avó a contar, lá estava ele debaixo da grande árvore e segurava um embrulho. Era uma prenda para ela. Ali estava um caderno para que pudesse continuar a inventar as suas histórias. O seu sonho de Natal tinha-se realizado. Também lhe deixou Os Maias, que tinha acabado de ler e prometeu voltar nas férias de verão e trazer-lhe mais livros e cadernos. A minha avó sentiu-se tão profundamente agradecida que lhe deu o único livro que possuía. O rapaz, que viria a ser o meu avô, recusou, pois sabia que não era apenas um livro, era o manuscrito da sua história, ao que a minha avó respondeu e foram essas exatamente as suas palavras, essa história vive dentro de mim, posso voltar a ela sempre que quiser.
Os meses passaram e não havia um só dia em que a minha avó não pensasse no seu amigo. Leu o romance que ele lhe tinha dado. Mais um final dramático que lhe dera ainda mais uma razão para continuar a reescrever o mundo com finais felizes.
Mas nas férias de verão o rapaz não apareceu. O sorriso da minha avó esmoreceu. Continuava entretida a criar as suas histórias. Já tinha usado todo o caderno e agora estava a escrever um romance usando para isso o livro dos Maias, onde tinha muitas páginas de entrelinhas para preencher. Assaltava-a agora a dúvida se todas as histórias teriam um final feliz. E o outono chegou e o grande carvalho começou a ficar despido e a folhagem a cobrir o chão como um tapete. E o coração da minha avó ia ficando cada vez mais apertado, afinal tinha prometido sorrir perante todas as adversidades, o que nem sempre se apresentava fácil.
Até que no dia da véspera de Natal, ao subir o monte com o rebanho, como sempre fazia, o seu coração bateu apressado. Tantas vezes imaginou voltar a ver o rapaz ali sentado no alto a ler que até duvidava do que os seus próprios olhos viam. Mas era verdade, lá estava ele sim, sereno a ler o seu livro. A minha avó apressou-se a juntar-se-lhe e como se o tempo nunca tivesse passado, perguntou-lhe o que estava a ler. Antes de ele lhe mostrar o livro quis desculpar-se por não ter aparecido no verão. Os seus pais tinham decidido passar férias fora do país e ele tinha ficado impedido de cumprir a sua promessa. Mas o importante era que agora estava ali e nesse momento estendeu-lhe o livro que tinha na mão. Na capa a minha avó pode ver o seu próprio nome impresso e quando o começou a folhear viu que era o romance que ela tinha escrito entre as linhas do livro A Rosa do Adro. E logo ali se abraçaram nesse e em todos os anos que se seguiram até terem idade para firmarem a mais linda história de amor de que eu sou testemunha. Uma história de amor sempre com um final feliz.
Amélia Silva